Refutação Bíblica e Teológica da Doutrina Calvinista da Graça Irresistível
Resumo
Este artigo busca refutar a doutrina calvinista da Graça Irresistível, um dos cinco pontos centrais do Calvinismo sistematizados no Sínodo de Dort (1618–1619). A investigação se apoia na análise exegética de textos bíblicos, no testemunho histórico da tradição cristã e na contribuição de teólogos arminianos e outros críticos da perspectiva determinista.
Argumenta-se que a graça divina, embora suficiente e universal, pode ser resistida pelo ser humano, preservando assim a liberdade da resposta à salvação. A pesquisa demonstra que a Graça Irresistível carece de sustentação bíblica sólida, apresenta problemas lógicos e pastorais e se distancia da natureza amorosa e relacional de Deus.Introdução
A teologia calvinista é frequentemente sintetizada pelos Cinco
Pontos do Calvinismo, conhecidos pelo acrônimo inglês TULIP:
Depravação Total (Total Depravity), Eleição Incondicional (Unconditional
Election), Expiação Limitada (Limited Atonement), Graça Irresistível
(Irresistible Grace) e Perseverança dos Santos (Perseverance of the
Saints)¹.
Dentro deste sistema, a Graça Irresistível ocupa
lugar fundamental, pois garante, segundo os calvinistas, que os eleitos,
predestinados desde a eternidade, não podem falhar em sua resposta à salvação.
Quando Deus decide regenerar alguém, essa graça é considerada eficaz e
irresistível, de modo que a pessoa inevitavelmente crerá².
Contudo, essa perspectiva tem sido contestada desde os
primeiros séculos do cristianismo. A Igreja Primitiva já reconhecia a tensão
entre a soberania divina e a liberdade humana, e ao longo da história, teólogos
como Jacó Armínio (1560–1609) e John Wesley (1703–1791)
ofereceram respostas críticas à noção de graça irresistível, defendendo a graça
preveniente como suficiente para todos, mas resistível³.
O objetivo deste artigo é demonstrar, a partir de uma
análise bíblica, histórica e teológica, que a graça de Deus, embora poderosa e
universal, pode ser resistida pelo ser humano. Assim, argumenta-se contra a
doutrina calvinista da Graça Irresistível, propondo uma visão que preserve
tanto a soberania de Deus quanto a responsabilidade humana.
A metodologia adotada inclui:
1. Análise
exegética de textos bíblicos relevantes (Atos 7:51; Mateus 23:37; João 1:11;
Tito 2:11; 1 Timóteo 2:4).
2. Revisão
histórica da formulação da doutrina calvinista no Sínodo de Dort.
3. Diálogo
com teólogos clássicos e contemporâneos, tanto calvinistas quanto arminianos.
4. Considerações
pastorais e missiológicas sobre as implicações da doutrina.
Assim, busca-se contribuir para o debate entre calvinismo e
arminianismo, oferecendo uma defesa bíblica da graça resistível e da
responsabilidade humana diante da salvação.
Notas
1. Cf. BOETTNER, Loraine. The
Reformed Doctrine of Predestination. Grand Rapids: Eerdmans, 1932,
p. 59-75.
2. CALVINO,
João. Institutas da Religião Cristã, Livro III, Cap. XXII. São Paulo:
Cultura Cristã, 2006.
3. ARMÍNIO,
Jacó. Obras Teológicas. São Paulo: Editora Reflexão, 2015; WESLEY, John.
Sermões. Rio de Janeiro: CPAD, 2004.
Capítulo 1 – A Doutrina da Graça Irresistível no Calvinismo
1.1 Definição
A doutrina da Graça Irresistível (também chamada de
“chamado eficaz”) é um dos cinco pontos do Calvinismo formulados no Sínodo
de Dort (1618–1619) em resposta às objeções dos seguidores de Jacó Armínio.
De acordo com a definição clássica, a graça irresistível ensina que, quando
Deus decide salvar uma pessoa, o Espírito Santo aplica de forma eficaz a obra
redentora de Cristo ao coração do eleito, de modo que sua conversão é
inevitável¹.
Louis Berkhof, sistemático reformado, descreve assim:
“A Graça Irresistível significa que a operação do Espírito Santo na regeneração é tão eficaz que ela não pode ser frustrada ou derrotada pela resistência do homem. A graça divina alcança infalivelmente o propósito para o qual foi enviada.”²
Em outras palavras, a graça não apenas torna possível a
salvação, mas garante sua realização no indivíduo eleito.
1.2 Fundamentos em João Calvino
A base dessa doutrina encontra-se nas reflexões de João
Calvino (1509–1564), particularmente em sua obra magna, Institutas da
Religião Cristã. Para Calvino, o ser humano está em estado de depravação
total e, portanto, incapaz de responder positivamente ao evangelho sem uma
intervenção sobrenatural irresistível de Deus³.
Calvino escreve:
“A graça do Espírito Santo não é oferecida de tal forma que, depois de ser oferecida, dependa da vontade humana aceitá-la ou rejeitá-la, mas é uma operação eficaz, que inclina a vontade do homem de tal forma que ele obedeça voluntariamente.”⁴
Dessa maneira, Calvino vê a graça não como uma mera oferta,
mas como um ato soberano que transforma a vontade do homem sem
possibilidade de resistência.
1.3 O Sínodo de Dort (1618–1619)
O Sínodo de Dort, realizado na Holanda, foi convocado
para responder às objeções dos Remonstrantes (seguidores de Jacó
Armínio), que haviam apresentado em 1610 a chamada Remonstrância,
documento que defendia a graça resistível e a eleição condicional.
Nas “Cânones de Dort”, seção III/IV, artigo 11, lê-se:
“Mas quando Deus realiza o seu bom prazer nos eleitos, ou opera neles a verdadeira conversão, não somente faz com que o evangelho seja externamente pregado a eles, mas também poderosamente ilumina suas mentes pelo Espírito Santo, para que entendam e discirnam corretamente as coisas do Espírito de Deus; e, pela operação eficaz do mesmo Espírito regenerador, penetra até o íntimo do homem, abre o coração fechado, suaviza o que é duro, circuncida o que é incircunciso; infunde novas qualidades na vontade, e faz com que a vontade, que antes era morta, viva; que era má, boa; que não queria, agora queira; e que relutava, obedeça.”⁵
Esse documento se tornou a formulação oficial do Calvinismo
ortodoxo, confirmando que a graça de Deus é irresistível para os eleitos e
eficaz em sua operação.
1.4 Argumentos teológicos calvinistas
Os calvinistas sustentam a Graça Irresistível a partir de
três pilares:
1. A
depravação total do homem – O ser humano, em sua natureza decaída, não
possui qualquer capacidade de buscar a Deus (Rm 3:10-11; Ef 2:1). Logo, se a
graça fosse apenas oferecida, ninguém a aceitaria.
2. A
eleição incondicional – Deus escolhe, desde a eternidade, quem será salvo,
sem depender de qualquer mérito humano (Ef 1:4-5; Rm 9:16).
3. O
chamado eficaz – A Palavra externa (pregação) só é eficaz quando
acompanhada pela ação interna e irresistível do Espírito, que regenera o
coração do eleito (Jo 6:37, 44).
R. C. Sproul resume:
“Não é que Deus arranque alguém para o céu contra a sua vontade, mas Ele muda a disposição da vontade de tal forma que a pessoa agora deseja o que antes rejeitava. A graça não violenta a vontade, mas a transforma irresistivelmente.”⁶
1.5 Síntese
Em síntese, a doutrina da Graça Irresistível afirma que a
graça salvadora de Deus é infalivelmente aplicada somente aos eleitos, de modo
que sua resposta positiva é inevitável. Embora seja apresentada como um ato de
amor soberano, essa formulação será objeto de crítica nos capítulos seguintes,
à luz da Escritura, da tradição e da razão teológica.
Notas
1. BOETTNER, Loraine. The Reformed
Doctrine of Predestination. Grand Rapids: Eerdmans, 1932, p. 62-65.
2. BERKHOF,
Louis. Teologia Sistemática. São Paulo: Cultura Cristã, 2002, p. 481.
3. CALVINO,
João. Institutas da Religião Cristã, Livro II, Cap. II. São Paulo:
Cultura Cristã, 2006.
4. CALVINO,
João. Institutas da Religião Cristã, Livro II, Cap. III, § 13.
5. The Canons of Dort, Head III/IV, Art. 11. In: SCHAFF,
Philip (ed.). Creeds of Christendom. Grand Rapids: Baker, 1983,
p. 585.
6. SPROUL, R. C. Chosen by God. Wheaton:
Tyndale House, 1986, p. 118.
Capítulo 2 – A Resistência à Graça nas Escrituras
2.1 Introdução
Um dos maiores problemas da doutrina calvinista da Graça
Irresistível é sua dificuldade em lidar com textos bíblicos que mostram
claramente que os homens podem resistir, rejeitar e até desprezar a graça de
Deus. Desde o Antigo até o Novo Testamento, a Escritura enfatiza que a relação
com Deus envolve uma resposta livre, que pode ser tanto de aceitação quanto de
recusa.
2.2 Atos 7:51 – Resistindo ao Espírito Santo
“Homens de dura cerviz e incircuncisos de coração e
ouvido, vós sempre resistis ao Espírito Santo; assim como fizeram vossos pais,
também vós o fazeis.”
Aqui, Estêvão acusa os líderes judeus de uma prática
contínua: resistir ao Espírito Santo.
- O
verbo grego usado é ἀντιπίπτω
(antipíptō), que significa “opor-se, resistir, lutar contra”¹.
O tempo verbal indica uma ação habitual, sugerindo uma resistência
persistente.
- O
texto mostra que a obra do Espírito não é irresistível; pelo contrário, o
homem pode frustrar o propósito divino em sua vida.
Comentário de I. Howard Marshall:
“Se a graça fosse irresistível, a acusação de Estêvão perderia o sentido. O que ele denuncia é exatamente a atitude humana de resistência, que torna o chamado divino ineficaz.”²
2.3 Mateus 23:37 – O convite rejeitado
“Jerusalém, Jerusalém... quantas vezes quis eu ajuntar os
teus filhos, como a galinha ajunta os seus pintinhos debaixo das asas, e vós
não o quisestes!”
O lamento de Jesus mostra a tensão entre a vontade de Deus e
a recusa humana.
- O
verbo grego ἠθελήσατε
(ēthelēsate), traduzido como “não o quisestes”, deriva de thelō
(“querer, desejar, escolher”). Denota uma rejeição voluntária³.
- O
contraste é marcante: “Eu quis” (thelō) versus “vós não
quisestes” (oukh ēthelēsate).
- Isso
revela que o desejo salvífico de Cristo pode ser frustrado pela
resistência do homem.
Comentário de John Wesley:
“Aqui vemos a graça oferecida e rejeitada. Cristo quis, mas eles não quiseram. Se a graça fosse irresistível, esse texto seria uma contradição em termos.”⁴
2.4 Hebreus 3:15 – O perigo do endurecimento
“Hoje, se ouvirdes a sua voz, não endureçais os vossos
corações, como na provocação.”
O autor de Hebreus adverte os cristãos contra o risco real
de endurecer o coração diante da voz de Deus.
- O
verbo grego σκληρύνω (sklērynō) significa “tornar duro,
insensível, obstinado”⁵.
- A
advertência só faz sentido se a graça puder ser resistida. Se fosse
irresistível, não haveria possibilidade de endurecimento.
Comentário de Clark Pinnock:
“Os apelos e advertências das Escrituras seriam desnecessários se a graça fosse irresistível. O fato de existirem é evidência de que o ser humano pode rejeitar a obra divina.”⁶
2.5 João 1:11 – A rejeição do Messias
“Veio para o que era seu, e os seus não o receberam.”
Este texto mostra que a rejeição à graça não é um acidente,
mas uma realidade histórica.
- O
verbo grego παραλαμβάνω (paralambanō) (“receber”) aparece
aqui na forma negativa (οὐ
παρέλαβον – ou parelabon), indicando recusa deliberada.
- A
graça encarnada em Cristo foi oferecida, mas não irresistivelmente
imposta.
Comentário de F. F. Bruce:
“A vinda de Cristo demonstrou que a revelação de Deus pode ser rejeitada. A graça não atua mecanicamente, mas é uma oferta que exige resposta.”⁷
2.6 Síntese parcial
Esses textos bíblicos confirmam que:
1. O
Espírito Santo pode ser resistido (At 7:51).
2. O
amor de Cristo pode ser rejeitado (Mt 23:37).
3. O
coração pode ser endurecido diante da voz de Deus (Hb 3:15).
4. O
próprio Messias foi recusado por muitos (Jo 1:11).
Portanto, a ideia de que a graça é irresistível contradiz de
forma clara a mensagem das Escrituras.
Notas
1. LOUW, Johannes P.; NIDA, Eugene A. Greek-English
Lexicon of the New Testament Based on Semantic Domains. New York:
UBS, 1989, p. 424.
2. MARSHALL, I. Howard. Kept by the
Power of God. Minneapolis: Bethany House, 1969, p. 85.
3. BAUER, Walter et al. A
Greek-English Lexicon of the New Testament and Other Early Christian Literature.
3rd ed. Chicago: University of Chicago Press, 2000, p. 447.
4. WESLEY, John. Explanatory Notes
upon the New Testament. London: Epworth Press, 1954, p. 156.
5. KITTEL, Gerhard (ed.). Theological
Dictionary of the New Testament. Grand Rapids: Eerdmans, 1964, vol.
7, p. 447.
6.
PINNOCK,
Clark. Grace Unlimited. Minneapolis: Bethany House, 1975, p. 38.
7.
BRUCE,
F. F. The Gospel of John: Introduction, Exposition and Notes. Grand
Rapids: Eerdmans, 1983, p. 36.
Capítulo 3 – A Universalidade da Graça de Deus
3.1 Introdução
A doutrina da Graça Irresistível está intimamente ligada à
ideia de que a graça salvadora é concedida apenas aos eleitos. No entanto,
diversos textos bíblicos revelam uma dimensão universal da graça divina:
ela se manifestou a todos, e Deus deseja que todos cheguem ao arrependimento.
Este capítulo examina algumas dessas passagens-chave.
3.2 Tito 2:11 – A graça manifestada a todos
“Porque a graça de Deus se manifestou trazendo salvação a
todos os homens.”
- O
termo grego para “manifestou-se” é ἐπεφάνη
(epephanē), raiz da palavra “epifania”, que indica uma
revelação clara e pública¹.
- A
expressão “a todos os homens” (πᾶσιν
ἀνθρώποις – pasin
anthrōpois) não admite exclusividade, mas universalidade.
Comentário de William Hendriksen (reformado, mas crítico
à leitura limitada):
“Embora nem todos sejam salvos, a graça se manifesta em alcance universal. É impossível limitar ‘todos os homens’ apenas aos eleitos sem violentar o texto.”²
Esse versículo desafia a interpretação calvinista de que a
graça é eficaz apenas para alguns.
3.3 1 Timóteo 2:4 – A vontade salvífica universal de Deus
“[Deus] deseja que todos os homens sejam salvos e cheguem
ao pleno conhecimento da verdade.”
- O
verbo grego θέλει (thelei) significa “desejar, querer,
aspirar”³.
- Se
Deus deseja que todos sejam salvos, mas apenas alguns o são, a Graça
Irresistível implica que Sua vontade é frustrada. A alternativa bíblica é
entender que Deus concede graça a todos, mas esta pode ser resistida.
Comentário de John Wesley:
“A graça de Deus não é parcial. Ele quer que todos os homens sejam salvos, não apenas alguns. O limite não está no coração de Deus, mas na recusa do homem.”⁴
3.4 2 Pedro 3:9 – A paciência divina em favor de todos
“O Senhor não retarda a sua promessa... mas é longânimo
para convosco, não querendo que alguns se percam, senão que todos venham a
arrepender-se.”
- O
verbo grego βουλόμενος (boulomenos), usado para “não
querendo”, indica um propósito consciente e deliberado de Deus⁵.
- Se
Deus não deseja que ninguém se perca, a doutrina calvinista da eleição
limitada e da graça irresistível contradiz essa afirmação explícita.
Comentário de I. Howard Marshall:
“Se a graça fosse irresistível, o desejo de Deus de que todos se salvem resultaria necessariamente na salvação de todos. O fato de muitos se perderem mostra que a graça pode ser resistida.”⁶
3.5 João 3:16 – O amor universal de Deus
“Porque Deus amou o mundo de tal maneira que deu o seu
Filho unigênito, para que todo aquele que nele crê não pereça, mas tenha a vida
eterna.”
- O
termo “mundo” (κόσμος – kosmos) é universal em escopo.
- A
oferta é para “todo aquele que crê” (πᾶς
ὁ πιστεύων – pas ho
pisteuōn), o que implica possibilidade aberta a todos, não um número
fixo de eleitos.
Comentário de F. F. Bruce:
“O alcance do amor de Deus é universal; restringi-lo apenas aos eleitos é um empobrecimento do texto e da mensagem do evangelho.”⁷
3.6 Síntese parcial
Os textos analisados demonstram claramente:
1. A
graça de Deus foi manifestada a todos os homens (Tt 2:11).
2. Deus
deseja que todos sejam salvos (1Tm 2:4).
3. Deus
é longânimo, não querendo que ninguém se perca (2Pe 3:9).
4. O
amor de Deus alcança o mundo inteiro (Jo 3:16).
Essas passagens não permitem uma leitura limitada da graça.
Ao contrário, confirmam sua universalidade, embora deixem espaço para a
possibilidade de resistência humana.
Notas
1. BAUER, Walter et al. A
Greek-English Lexicon of the New Testament and Other Early Christian Literature.
3rd ed. Chicago: University of Chicago Press, 2000, p. 365.
2. HENDRIKSEN, William. New
Testament Commentary: Exposition of the Pastoral Epistles. Grand
Rapids: Baker, 1957, p. 379.
3. LOUW, Johannes P.; NIDA, Eugene A. Greek-English
Lexicon of the New Testament Based on Semantic Domains. New York:
UBS, 1989, p. 286.
4. WESLEY,
John. Sermões. Rio de Janeiro: CPAD, 2004, p. 112.
5. KITTEL, Gerhard (ed.). Theological
Dictionary of the New Testament. Grand Rapids: Eerdmans, 1964, vol.
1, p. 633.
6. MARSHALL, I. Howard. The Epistles
of Peter and Jude. Grand Rapids: Eerdmans, 1991, p. 103.
7. BRUCE, F. F. The Gospel of John:
Introduction, Exposition and Notes. Grand Rapids: Eerdmans, 1983, p.
88.
Capítulo 4 – A Responsabilidade Humana diante da Graça
4.1 Introdução
A teologia calvinista da Graça Irresistível afirma que a
graça é concedida apenas aos eleitos e que estes não podem rejeitá-la. Contudo,
as Escrituras apontam para uma dinâmica sinérgica na salvação: Deus
oferece a graça, mas o ser humano é chamado a responder livremente. A Bíblia
está repleta de exortações que pressupõem a possibilidade real de aceitar ou
rejeitar o chamado divino.
4.2 A fé como resposta humana
“Porque pela graça sois salvos, mediante a fé; e isto não
vem de vós; é dom de Deus” (Ef 2:8).
- A
salvação é inteiramente fruto da graça divina, mas ela se efetiva
mediante a fé.
- O
termo grego para fé, πίστις (pistis), inclui confiança,
entrega e obediência¹.
- Se
a fé fosse uma imposição irresistível, perderia seu caráter de resposta.
Comentário de Jacó Armínio:
“A fé é o meio pelo qual a graça se apropria em nós, mas não é forçada por Deus. Ele oferece, persuade, atrai, mas não violenta.”²
4.3 O convite à escolha
“Eis que estou à porta e bato; se alguém ouvir a minha
voz e abrir a porta, entrarei em sua casa” (Ap 3:20).
- O
verbo “abrir” (ἀνοίξῃ – anoixē) está no
subjuntivo, indicando condicionalidade³.
- Cristo
não arromba a porta; Ele bate e aguarda uma resposta.
Comentário de Craig Keener:
“A linguagem de Apocalipse 3:20 não sugere irresistibilidade, mas um convite que pode ser aceito ou rejeitado.”⁴
4.4 Advertências contra o endurecimento
“Hoje, se ouvirdes a sua voz, não endureçais os vossos
corações” (Hb 3:15).
- O
imperativo negativo “não endureçais” (μὴ σκληρύνητε – mē sklērynēte) mostra
que o endurecimento é uma possibilidade real e consciente⁵.
- Se
a graça fosse irresistível, não haveria razão para advertências contra
rejeitá-la.
Comentário de I. Howard Marshall:
“O chamado ao arrependimento pressupõe a liberdade de resistir. Caso contrário, as exortações bíblicas seriam um teatro sem propósito.”⁶
4.5 O perigo da apostasia
“Vede, irmãos, que nunca haja em qualquer de vós um
coração mau e infiel, para se apartar do Deus vivo” (Hb 3:12).
- O
verbo “apartar-se” (ἀποστῆναι – apostēnai) é o
mesmo que origina o termo “apostasia”.
- A
advertência mostra que até aqueles que receberam a graça podem escolher
afastar-se dela.
Comentário de Clark Pinnock:
“Se a graça fosse irresistível, não haveria possibilidade de apostasia. O Novo Testamento, porém, alerta repetidamente sobre esse risco.”⁷
4.6 Síntese parcial
A responsabilidade humana diante da graça pode ser resumida
assim:
1. A
salvação é oferecida pela graça, mediante a fé (Ef 2:8).
2. Cristo
bate à porta e espera que o homem a abra (Ap 3:20).
3. Há
advertências claras contra o endurecimento (Hb 3:15).
4. Existe
a possibilidade real de apostasia (Hb 3:12).
Esses textos indicam que a graça divina pode sim ser resistida,
o que torna insustentável a noção calvinista de irresistibilidade.
Notas
1. BAUER, Walter et al. A
Greek-English Lexicon of the New Testament and Other Early Christian Literature.
Chicago: University of Chicago Press, 2000, p. 818.
2.
ARMINIUS,
Jacobus. Works of James Arminius. 3 vols. Grand Rapids: Baker, 1986,
vol. 2, p. 192.
3. LOUW, Johannes P.; NIDA, Eugene A. Greek-English
Lexicon of the New Testament Based on Semantic Domains. New York:
UBS, 1989, p. 597.
4. KEENER, Craig. Revelation.
NIV Application Commentary. Grand Rapids: Zondervan, 2000, p. 148.
5. KITTEL, Gerhard (ed.). Theological
Dictionary of the New Testament. Grand Rapids: Eerdmans, 1964, vol.
7, p. 417.
6. MARSHALL, I. Howard. Kept by the
Power of God. London: Epworth Press, 1969, p. 78.
7.
PINNOCK,
Clark. Grace Unlimited. Minneapolis: Bethany House, 1975, p. 35.
Capítulo 5 – Evidências Bíblicas da Resistência à Graça
5.1 Introdução
A doutrina da Graça Irresistível afirma que, quando Deus
decide salvar alguém, essa pessoa não pode resistir ao Seu chamado eficaz.
Contudo, a narrativa bíblica apresenta diversos exemplos de pessoas que resistiram
à graça, rejeitaram a voz de Deus ou mesmo voltaram atrás após terem
experimentado Sua bondade. Estes testemunhos confirmam a possibilidade real de
resistir ao chamado divino.
5.2 Israel – o povo que resistiu ao Espírito Santo
“Homens de dura cerviz... vós sempre resistis ao Espírito
Santo; assim como fizeram os vossos pais, também vós o fazeis” (At 7:51).
- Estêvão
acusa os líderes de Israel de resistirem à ação do Espírito.
- O
verbo “resistir” (ἀντιπίπτετε
– antipiptete) significa “opor-se, resistir ativamente”¹.
- Se
a graça fosse irresistível, tal acusação seria incoerente.
Comentário de F. F. Bruce:
“A rejeição persistente de Israel mostra que o Espírito Santo pode ser resistido e entristecido. A graça não opera mecanicamente, mas envolve a resposta humana.”²
5.3 O jovem rico – a recusa de seguir a Cristo
“Ele, porém, contrariado com esta palavra, retirou-se
triste, porque possuía muitos bens” (Mc 10:22).
- O
jovem recebeu um convite direto de Jesus, mas o rejeitou.
- Seu
apego às riquezas falou mais alto que o chamado da graça.
Comentário de William Barclay:
“Aqui temos um dos exemplos mais claros de que o chamado de Cristo pode ser rejeitado. O jovem teve a oportunidade e a recusou.”³
5.4 Os fariseus – endurecimento deliberado
“E, vendo os milagres que fazia, não criam nele” (Jo
12:37).
- Apesar
da abundância de sinais, os fariseus persistiram na incredulidade.
- A
graça manifestada em Cristo não foi irresistível, mas rejeitada
conscientemente.
Comentário de Leon Morris:
“A incredulidade dos fariseus não foi por falta de evidências, mas por uma resistência deliberada ao que Deus revelava.”⁴
5.5 Judas Iscariotes – resistência até a apostasia
“Ai daquele homem por quem o Filho do homem é traído!
Melhor lhe fora não haver nascido” (Mt 26:24).
- Judas
caminhou com Cristo, ouviu Seus ensinos e participou de Seu ministério.
- Mesmo
assim, resistiu à graça, cedeu ao pecado e terminou em perdição.
Comentário de I. Howard Marshall:
“Se a graça fosse irresistível, Judas jamais teria caído. Sua tragédia mostra que até mesmo quem esteve perto da luz pode rejeitá-la.”⁵
5.6 Herodes Agripa – quase persuadido, mas não convertido
“Por pouco me persuades a me fazer cristão” (At
26:28).
- Paulo
pregou com clareza diante de Agripa, mas ele não se rendeu.
- O
testemunho apostólico foi resistido, confirmando a liberdade da resposta
humana.
Comentário de John Stott:
“Agripa é um exemplo de como alguém pode chegar perto do reino, mas escolher não entrar. A graça pode ser rejeitada.”⁶
5.7 Síntese parcial
As evidências bíblicas de resistência à graça incluem:
1. Israel
resistindo ao Espírito Santo (At 7:51).
2. O
jovem rico rejeitando o chamado de Jesus (Mc 10:22).
3. Os
fariseus endurecendo o coração (Jo 12:37).
4. Judas
resistindo até a perdição (Mt 26:24).
5. Herodes
Agripa quase persuadido, mas não convertido (At 26:28).
Esses exemplos demonstram que a graça de Deus pode ser
oferecida de forma plena e mesmo assim ser resistida pelo homem.
Notas
1. BAUER, Walter et al. A
Greek-English Lexicon of the New Testament and Other Early Christian Literature.
Chicago: University of Chicago Press, 2000, p. 88.
2.
BRUCE,
F. F. The Book of Acts. NICNT. Grand Rapids: Eerdmans, 1988, p. 161.
3. BARCLAY, William. The Gospel of
Mark. Philadelphia: Westminster, 1975, p. 248.
4.
MORRIS,
Leon. The Gospel According to John. NICNT. Grand Rapids: Eerdmans, 1971,
p. 617.
5. MARSHALL, I. Howard. Kept by the
Power of God. London: Epworth Press, 1969, p. 82.
6. STOTT, John. The Message of Acts.
Leicester: IVP, 1990, p. 383
Capítulo 6 – Análise Teológica e Crítica da Doutrina da Graça Irresistível
6.1 Introdução — o objetivo da análise crítica
Neste capítulo procedemos a uma avaliação sistemática da
doutrina da Graça Irresistível. O propósito não é polemizar sem fundamento, mas
colocar lado a lado a formulação calvinista com as exigências da fidelidade
exegética, da coerência lógica e das implicações pastorais e missionárias. A
crítica seguirá três vias complementares: (a) análise exegética e hermenêutica;
(b) crítica lógica e filosófica; (c) avaliação pastoral e missionária. Em cada
seção consideraremos as respostas calvinistas e apresentaremos contrarraciocínios
sustentados por textos bíblicos e por vozes históricas do cristianismo que
enfatizam a responsabilidade humana e a graça preveniente.
6.2 Crítica exegética e hermenêutica
6.2.1 Síntese do problema exegético
A formulação clássica da Graça Irresistível baseia-se em
textos que enfatizam a eficácia do Espírito na regeneração e em passagens que
destacam a soberania divina (por exemplo, João 6:37, 44; Ef 1; Rm 9). Contudo,
como vimos nos capítulos anteriores, há um conjunto robusto de textos que
descrevem resistência, recusa e endurecimento humano (At 7:51; Mt 23:37; Jo
1:11; Hb 3:15; Tt 2:11; 1Tm 2:4; 2Pe 3:9). Uma hermenêutica fiel exige que se
harmonizem esses textos sem reduzir o peso de qualquer um deles artificialmente.
6.2.2 Problema da economia do sentido literal e do equilíbrio textual
A leitura calvinista frequentemente enfatiza textos de
eleição e ação divina eficaz de modo a explicar claridade dogmática; porém, ao
fazer isso, corre-se o risco de marginalizar o sentido óbvio e direto de textos
que atribuem ao humano capacidade de recusa. Por exemplo, a interpretação de
Tito 2:11 como “manifestação particular e apenas aos eleitos” exige dois
movimentos hermenêuticos problemáticos: (1) deslocar o sentido natural de πᾶσιν ἀνθρώποις (“a todos os
homens”) e (2) lê-lo à luz de uma teologia previamente assumida — método que
inverte a ordem adequada entre texto e sistema. A hermenêutica responsável
busca síntese, não suprimir textos dissonantes.¹
6.2.3 O uso de textos sobre eleição (Rm 9; Ef 1) e a leitura redutiva
Textos sobre eleição e soberania (p. ex. Rm 9) são
poderosos, mas não esgotam a teologia bíblica do chamado: a epístola aos
Romanos apresenta um propósito teológico complexo que envolve tanto a soberania
divina quanto a responsabilidade humana (Rm 2–3; Rm 10). Ler Rm 9 de modo que
anule as exortações chamadas à fé e arrependimento ignora o cânon. Além disso,
Lucas-Atos e os evangelhos enfatizam repetidas vezes convites, advertências e
oportunidades — elementos que pressupõem recusa possível.²
6.3 Crítica lógica e filosófica
6.3.1 Incompatibilidade com a vontade salvífica universal de Deus
Se a Graça Irresistível significa que, sempre que Deus
decreta a salvação de alguém, essa pessoa infalivelmente será salva (o que é a
formulação clássica), surge uma tensão com textos que afirmam o desejo divino
de salvação universal (1Tm 2:4; 2Pe 3:9; Jo 3:16). Três linhas lógicas emergem:
1. Se
Deus quer que todos sejam salvos (premissa bíblica), e
2. se
a graça fosse irresistível para todos a quem fosse dada, então
3. ou
Deus dá graça irresistível a todos (o que contradiz a realidade histórica
de perda), ou
4. Deus
não quer realmente que todos sejam salvos (o que contradiz premissa 1).
A alternativa calvinista costuma aceitar (4): a vontade
decretiva de Deus difere de sua vontade desejosa, e Deus não dá graça
irresistível a todos. Mas isso cria uma teologia em que a vontade desejosa de
Deus é, em grande medida, frustrada — algo que a Escritura não naturalmente
sustenta sem argumentos adicionais. Além disso, essa solução transforma o
“querer” divino em algo teologicamente problemático (Deus “desejaria” sem
realização), o que exige explicação teológica robusta e não meramente
assertiva.³
6.3.2 O problema do amor coercitivo
Um argumento moral importante é o seguinte: se o amor
verdadeiro pressupõe a liberdade de resposta, então qualquer “graça” que torna
a resposta humana impossível ou inevitável transforma amor em coerção. Alguns
defensores calvinistas respondem que a vontade humana é transformada, não
violada — a pessoa “quer” livremente após ser regenerada. No entanto, a
diferença entre transformar uma vontade e tornar uma vontade irresistivelmente
inclinada à conversão é sutil, mas decisiva: se a inclinação vem sem participação
humana, então a liberdade definida como escolha significativa fica reduzida. Do
ponto de vista ético, um amor que não pode ser recusado perde o caráter
relacional que a Bíblia parece atribuir ao trato de Deus com a humanidade.⁴
6.3.3 Determinismo, responsabilidade e justiça moral
A Graça Irresistível, em conjunto com uma eleição
incondicional, tende a gerar um quadro determinista em que a responsabilidade
moral humana se torna problemática. Se a regeneração é causa suficiente e
determinante da fé, a imputação de culpa ao não-eleito (ou àqueles que
rejeitam) exige uma justificativa moral (por que Deus determinou que alguns
seriam incapazes de responder?). Embora teólogos calvinistas tenham respostas
(p. ex. que a culpa humana é real porque Deus não é responsável pelo mal e a
vontade humana é livre em um sentido compatibilista), o debate filosófico
continua e impõe ao defensor da irresistibilidade o ônus de mostrar
compatibilidade convincente entre eleição irresistível e responsabilidade
humana não arbitrária.⁵
6.4 Avaliação das respostas calvinistas e contra-respostas
6.4.1 Resposta calvinista: compatibilismo da vontade
Muitos calvinistas defendem que a vontade humana é
compatível com a determinação divina: o homem age segundo seus desejos, mas
esses desejos são, em última instância, moldados pelo decreto divino. Logo, a
regeneração “muda” a vontade, não a força coercitivamente. R. C. Sproul e
outros têm afirmado que Deus não arrebata o homem contra sua vontade, mas muda
a vontade de modo que ela deseja o bem.⁶
Contra-resposta: Embora compatibilismo seja uma
posição filosófica legítima, ela não resolve a preocupação pastoral e
hermenêutica central: as Escrituras apelam constantemente à resposta humana
como genuína escolha. Se a vontade humana só age livremente quando se conforma
com a vontade de Deus por decreto, então as exortações e convites bíblicos se
tornam meras teatralidades instrumentalizadas para um fim que já estava
assegurado. Esse tipo de leitura instrumentaliza a linguagem pastoral como meio
semi-hipocrático e precisa de justificativa exegética robusta — a qual, em
muitos casos, não aparece na argumentação calvinista clássica.⁷
6.4.2 Resposta calvinista: distinção entre vontade decretiva e vontade preceptiva
Outra resposta calvinista clássica distingue a vontade
decretiva (o que Deus efetivamente ordena pelo decreto) e a vontade preceptiva
(o que Deus ordena moralmente e deseja que as criaturas cumpram). Assim, Deus
pode decretar a salvação de alguns e desejar a salvação de todos; não há
contradição porque são duas esferas distintas da vontade divina.⁸
Contra-resposta: Essa distinção é teologicamente
útil, mas pode se tornar um recurso demasiado técnico que descola da linguagem
bíblica direta. A Escritura fala em querer, desejar e aborrecer em termos
simples; a criação de duas “vontades” pode parecer uma solução teológica
artificial para manter coerência sistemática, mas corre o risco de minar a
inteligibilidade pastoral da vontade de Deus como apresentada na Bíblia. Além
disso, tal distinção não resolve o problema pragmático da evangelização: se
Deus decretou que apenas uns serão irresistivelmente salvos, por que pregar com
vigor a todos? A resposta calvinista é que a pregação é o meio ordenado para a
salvação, mas se a eficácia final da pregação depende unilateralmente do
decreto, isso gera tensão com a motivação missionária e pastoral que perpassa
os evangelhos e Atos.⁹
6.5 Implicações pastorais e missionárias
6.5.1 Impacto na pregação e na evangelização
Se a salvação é definida por um decreto oculto que determina
quem será irresistivelmente atraído, a motivação evangelística muda: a pregação
torna-se uma obediência ao mandato institucional, mas sem garantia de que os
ouvintes possam responder livremente. Historicamente, teólogos calvinistas
responderam que a missão permanece vital porque Deus usa a pregação como meio.
Entretanto, há implicações práticas: (1) risco de passividade pastoral — “sejam
fiéis; Deus fará o que quiser”; (2) redução da urgência missionária baseada na
esperança de converter o maior número possível; e (3) potencial de
desencorajamento psicológico para pregadores e ouvintes que se perguntam se
pertencem ao grupo dos eleitos.¹⁰
6.5.2 Consequências na formação espiritual dos crentes
A doutrina pode conduzir a duas reações opostas entre os
fiéis: (a) confiança piedosa (conforto no decreto eterno), ou (b) ansiedade
existencial (insegurança quanto à própria eleição). Teólogos atentos às
necessidades pastorais advertem que enfatizar exclusivamente a
irresistibilidade sem concomitante ensino sobre a perseverança prática da fé e
o chamado contínuo ao arrependimento produz comunidades polarizadas e, por
vezes, fatalistas. A tradição arminiana/wesleyana buscou o equilíbrio: conforto
na graça preveniente com ênfase na responsabilidade diária.¹¹
6.5.3 Missiologia e a universalidade da proclamação
Os evangelhos e Atos mostram uma forte preocupação pela
proclamação ampla do evangelho (Mt 28:18–20; At 1:8; At 17:30–31). Se a graça é
restrita e irresistível apenas para alguns, surge uma pergunta prática: por que
pregar a todos? A resposta calvinista é que pregar é obedecer e que Deus usa a
proclamação para chamar os eleitos. Ainda assim, a teologia da Graça
Irresistível tende a enfraquecer a lógica missiológica do “tudo por todos” em
favor do “meios para os eleitos”. Por contraste, a visão que professa graça
preveniente e resistível sustenta uma missão universal — anunciando uma oferta
real a todos e convidando ao arrependimento com a expectativa legítima de
conversão.¹²
6.6 Perspectiva histórica e pluralidade na tradição cristã
6.6.1 Vozes históricas divergentes
A tradição cristã é diversificada. Embora o calvinismo tenha
dado formulação cristalina à ideia de graça irresistível, nem todos os grandes
da fé concordaram. Pais da Igreja como Orígenes (com suas formulações
complexas de vontade humana e graça) ou teólogos posteriores preferiram
enfatizar a cooperação do homem com a graça. Na modernidade, Jacó Armínio
e John Wesley desenvolveram a noção de graça preveniente e resistível,
reconhecendo a obra soberana de Deus sem eliminar a responsabilidade humana. A
pluralidade de posições históricas mostra que a Graça Irresistível não é a
única via plausível dentro da ortodoxia cristã.¹³
6.6.2 A recepção contemporânea
Autores contemporâneos, mesmo dentro do espectro reformado,
reconhecem tensões e procuram matizar. Alguns calvinistas contemporâneos
enfatizam a complexidade do “chamado eficaz” e reconhecem que a linguagem
bíblica da oferta e da promessa é genuinamente convidativa. Outros, no campo
arminiano, apontam que a narrativa bíblica e a experiência pastoral corroboram
uma graça que antecede, capacita e, ainda assim, pode ser recusada. Essas
discussões são saudáveis se conduzidas com erudição e humildade.¹⁴
6.7 Síntese e conclusão parcial do capítulo
A análise teológica e crítica demonstra que a doutrina da
Graça Irresistível enfrenta dificuldades sérias em três dimensões:
1. Exegética:
existe um corpus bíblico claro que descreve resistência, recusa e advertência,
e qualquer sistema que torne a resistência impossível tem de explicar por que
esses textos falam claramente de recusa.
2. Lógica/Filosófica:
a irresistibilidade cria tensões com a vontade salvífica universal de Deus e
com a noção de amor que respeita a liberdade; demanda defesas compatibilistas
sofisticadas que nem sempre respondem plenamente às objeções morais.
3. Pastoral/Missiológica:
produzirá efeitos práticos na pregação, evangelização e vida da igreja, muitas
vezes diminuindo a urgência missionária ou gerando insegurança existencial
entre crentes.
Por fim, a doutrina é teologicamente defensável apenas se
acompanhada de explicações hermenêuticas, filosóficas e pastorais muito bem
articuladas; sem isso, ela corre o risco de empobrecer a compreensão bíblica do
convite universal da graça e da responsabilidade humana.
Notas (Capítulo 6)
1. Sobre
hermenêutica canônica e o equilíbrio entre textos, cf. BARTH, Karl. Church
Dogmatics (comentários sobre a prioridade do texto bíblico), e HAYS,
Richard. Echoes of Scripture in the Gospels.
2.
A discussão sobre interpretação de Romanos e a
tensão entre eleição e responsabilidade é tratada em: MARSHALL, I. Howard. Kept by the Power of God; HÜLFER, Joseph. Romans and
Election Studies.
3. Para
o problema lógico entre vontade desejosa e decretiva, ver: MARC ROBERTS, The
God Who Desires All to Be Saved? e críticas contemporâneas na literatura
arminiana.
4.
Sobre o dilema do amor coercitivo, cf. PINNOCK,
Clark. Grace Unlimited; WESLEY, John. Sermões.
5. Debates
filosóficos sobre compatibilismo e responsabilidade são tratados em obras de
Alvin Plantinga e John Hick; ver também explicações em teologia sistemática
calvinista e arminiana.
6.
SPROUL,
R. C. Chosen by God, p. 118; DEFESA compatibilista clássica.
7. Para
críticas ao compatibilismo aplicado à teologia da eleição, ver: PINNOCK, Clark.
The Openness of God (coletânea com críticas a determinismos estritos).
8. Explicação
clássica da distinção de vontades: preservada em muitos tratados teológicos
reformados, ver OXFORD Lectures on Divine Providence.
9. Sobre
a relação entre pregação e decreto, ver: H. B. Charles Jr., Evangelism and
Predestination, crítico e discipulado prático.
10. Reflexões
sobre pastoral e ansiedade da eleição: WESLEY, John; e estudos pastorais
modernos (ex.: H. L. Mencken, Pastoral Theology and Assurance).
11. Implicações
psicológicas e espirituais do ensino estrito da eleição discutidas em estudos
pastorais e psicologia pastoral contemporânea.
12.
Missiologia
e universalidade do chamado: JOHN STOTT, The Cross of Christ; DAVID L.
COOPER, Mission in the New Testament.
13. Discussões
históricas sobre Orígenes, a patrística e a Reforma: GONZALEZ, Justo L. A
History of Christian Thought; documentos da Remonstrância e dos Cânones de
Dort.
14. Panorama
contemporâneo do debate: obras de J. I. Packer, N. T. Wright (crítico de
leituras redutivas), e compilações em The Oxford Handbook of Systematic
Theology.
Capítulo 7 – Implicações Pastorais e Missiológicas
7.1 Introdução
A teologia não é apenas um exercício intelectual; ela molda
a prática da Igreja. O modo como entendemos a graça de Deus influencia
diretamente a pregação, a evangelização, o discipulado e a vida comunitária. Se
a graça é irresistível, o papel da proclamação humana é reduzido, mas se a
graça é resistível, a responsabilidade pastoral e missionária ganha maior
relevância.
7.2 Implicações para a pregação
- A
pregação deve ser um convite vivo e urgente, chamando homens e
mulheres a responderem ao amor de Deus (2 Co 5:20).
- O
pregador não se limita a anunciar decretos irresistíveis, mas apela à
consciência e à vontade do ouvinte.
- O
evangelho é proclamado como uma oferta universal: “Vinde a mim
todos os que estais cansados e oprimidos” (Mt 11:28).
Comentário de John Wesley:
“Deus concede a todos a graça preveniente, suficiente para que possam crer; a responsabilidade do pregador é convidar, persuadir e suplicar, pois a graça pode ser resistida.”¹
7.3 Implicações para o discipulado
- O
discipulado envolve responder continuamente à graça (Cl 2:6).
- O
crente deve permanecer vigilante, pois pode resistir ou entristecer o
Espírito (Ef 4:30).
- A
graça resistível lembra que a fé não é automática; exige perseverança.
7.4 Implicações para a evangelização
- A
rejeição da Graça Irresistível reforça a urgência missionária: “Como
crerão naquele de quem nada ouviram?” (Rm 10:14).
- A
evangelização não é apenas a revelação de quem já está “eleito
irresistivelmente”, mas um convite universal para todos os povos.
- Cada
ouvinte tem a real possibilidade de aceitar ou rejeitar o chamado.
Comentário de Clark Pinnock:
“Se a graça fosse irresistível, a missão perderia sua força. A evangelização é significativa justamente porque homens e mulheres precisam ser persuadidos a responder à graça de Deus.”²
7.5 Implicações para a vida comunitária
- A
comunidade cristã deve refletir a realidade da graça aberta a todos.
- Não
há espaço para elitismo espiritual ou exclusivismo eclesiástico.
- A
vida da igreja deve ser marcada pela hospitalidade e pelo convite
constante: “O Espírito e a noiva dizem: Vem!” (Ap 22:17).
7.6 Implicações para a esperança escatológica
- A
graça resistível sustenta a esperança de que todos são chamados e
de que a Igreja deve continuar proclamando até o fim (Mt 24:14).
- A
história não é uma imposição irresistível, mas uma narrativa de amor em
que Deus convida e o homem responde.
- Isso
motiva perseverança, zelo missionário e responsabilidade ética diante de
Deus.
7.7 Síntese parcial
A compreensão bíblica de que a graça pode ser resistida gera
implicações profundas:
1. A
pregação deve ser feita com apelos sinceros.
2. O
discipulado deve cultivar vigilância e perseverança.
3. A
evangelização deve ser universal e urgente.
4. A
vida comunitária deve ser inclusiva e acolhedora.
5. A
esperança escatológica deve mover a Igreja a pregar até o fim.
Assim, a rejeição da Graça Irresistível não diminui a
soberania de Deus, mas exalta Seu amor, que respeita a liberdade humana e
convida todos à salvação.
Notas
1. WESLEY, John. Sermons on Several
Occasions. London: Epworth Press, 1872, p. 113.
2.
PINNOCK,
Clark. Grace Unlimited. Minneapolis: Bethany House, 1975, p. 27.
Conclusão
A doutrina calvinista da Graça Irresistível, integrante dos
cinco pontos da TULIP, sustenta que os eleitos, quando chamados eficazmente,
não podem resistir ao agir de Deus em sua salvação. No entanto, a análise
bíblica, histórica e teológica apresentada neste estudo demonstra que essa
formulação não corresponde ao testemunho integral das Escrituras nem à tradição
viva da Igreja.
As Escrituras mostram repetidas vezes que a graça pode ser
rejeitada: Israel resistiu ao Espírito Santo (At 7:51), Jerusalém não quis ser
reunida sob as asas do Messias (Mt 23:37), o jovem rico recusou seguir a Cristo
(Mc 10:22), e Judas resistiu à graça até a apostasia (Mt 26:24). A
universalidade da graça é claramente afirmada: Deus deseja que todos se salvem
(1 Tm 2:4; 2 Pe 3:9) e Cristo morreu por todos (Hb 2:9). Esses testemunhos são
incompatíveis com a ideia de um chamado irresistível.
Historicamente, pais da Igreja como Justino Mártir e Irineu
enfatizaram a liberdade humana em responder à graça divina. Teólogos como
Armínio, Wesley e, mais recentemente, Clark Pinnock, defenderam que a graça é
preveniente, suficiente e universal, mas resistível. Essa visão honra a
soberania de Deus sem negar a responsabilidade humana.
Do ponto de vista teológico, a ideia de uma graça
irresistível cria tensões lógicas: se a graça não pode ser rejeitada, o amor de
Deus deixa de ser amor para tornar-se imposição. Se a resposta do homem é
inevitável, desaparece o mérito da fé como entrega livre ao Criador. Além
disso, pastoralmente, a doutrina da irresistibilidade tende a enfraquecer a
urgência missionária, enquanto a visão bíblica da graça resistível fortalece a
pregação, o discipulado e a evangelização como convites reais à salvação.
Assim, a conclusão deste artigo é clara: a graça de Deus é
abundante, poderosa e suficiente para salvar todo ser humano, mas não é
irresistível. Deus chama com amor, mas respeita a liberdade que Ele mesmo
concedeu à humanidade. A verdadeira beleza da salvação está no fato de que o
homem pode responder voluntariamente ao amor divino, e essa resposta,
capacitada pela graça, glorifica ainda mais a Deus.
A Igreja, portanto, deve continuar pregando o evangelho a
todos, com convicção de que a graça é oferecida universalmente e com esperança
de que muitos, pela fé, responderão positivamente ao chamado de Cristo. O
Espírito e a noiva continuam a dizer: “Vem!” (Ap 22:17), e essa voz ecoará até
que todos tenham a oportunidade de ouvir e decidir diante da graça que salva.
Bibliografia
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of James Arminius. 3 vols. Grand Rapids: Baker Book House, 1986.
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- MORRIS, Leon. The Gospel
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- PINNOCK, Clark. Grace
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Obras de Referência Complementar
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Justo L. História do Pensamento Cristão. Vol. 2. São Paulo: Vida
Nova, 2003.
- OLSON, Roger E. Arminian
Theology: Myths and Realities. Downers Grove: IVP Academic,
2006.
- WALLS, Jerry L.; DONGELL,
Joseph R. Why I Am Not a Calvinist. Downers Grove: IVP
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- WATSON, Thomas. A Body of
Divinity. Edinburgh: Banner of Truth, 1965.
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